Os verdadeiros mistérios do Brasil
Antonio Luiz Monteiro Coelho da Costa




O Brasil antes de Cabral, segundo os caras-pálidas
Depois dos paleoindígenas, surgem as culturas dos indígenas que conhecemos, ou melhor, de seus ancestrais. O livro de André Prous, O Brasil antes dos Brasileiros, resume brevemente o que se tem como razoavelmente bem estabelecido sobre suas culturas arqueologicamente mais bem estudadas.
Isto inclui os ancestrais dos charruas e minuanos do pampa que construíam casas semi-subterrâneas nos chamados "cerritos", plataformas erguidas perto das lagoas do extremo sul, e também os construtores dos sambaquis das costas da região Sul, que também produziam estatuetas de pedra em forma de animais, conhecidas como zoólitos.
E também os antigos indígenas do Sertão e do Vale do São Francisco, alguns dos quais chegaram a criar comunidades de tamanho bem significativo (aldeias de até dois mil habitantes, pelo menos). Muitos desses povos cobriram paredões e grutas de Minas Gerais e do Nordeste com arte rupestre (pinturas em pedra) cujo estilo pode variar notavelmente de época para época e de região para região. A Serra da Capivara, no Piauí, Montalvânia, em Minas Gerais, a Serra Talhada, em Pernambuco são exemplos dessas galerias de arte pré-histórica brasileira.
Exemplos análogos de arte rupestre são comuns em qualquer parte do mundo com ocupação humana antiga e superfícies rochosas bem preservadas, mas o simples fato de que os índios brasileiros criaram representações artísticas e simbólicas ainda custa a entrar na cabeça de muita gente.
Tanto que os exemplos encontrados em São Tomé das Letras - que nem são dos mais notáveis - têm dado origem às especulações mais descabeladas. São bem conhecidas porque acessíveis: uma delas está no centro da cidade, na gruta na qual foi supostamente achada a imagem de São Tomé que deu origem à Igreja Matriz e à povoação, em 1785. Martinho de Mendonça de Pena e de Proença - filólogo e membro da Real Academia de Lisboa - as tomou por "letras" em caracteres romanos! O povo acreditou que eram da mão do próprio santo. Segundo a tradição católica, Tomé teria pregado o Evangelho na "Índia" (ou, mais razoavelmente, no Irã), mas como as Américas eram as "Índias"...
Mais tarde, especulações ainda mais estranhas chegaram a circular. As tais "letras" - ainda que não se parecessem com letras reais de nenhuma outra cultura - teriam sido escritas por vikings, fenícios, incas, até extraterrestres. Como se o Brasil tivesse sido um deserto antes da chegada de Cabral...
Muita gente leva a sério a fantasia esotérica sobre uma absurda conexão subterrânea entre as cavernas de São Tomé e Machu Picchu. Ao mesmo tempo ignora que existiu uma conexão real e visível entre São Paulo e o Império Inca. A saber, a trilha conhecido como Peabiru ("caminho forrado" em guarani, por ser coberta de grama), construído não pelos incas, mas pelos nossos guaranis e carijós, para possibilitar a comunicação e a troca entre aldeias dos atuais Sul e Sudeste do Brasil à província incaica do Collasuyu (atualmente Bolívia e norte da Argentina), passando por Assunção do Paraguai.
Se a conexão inca faz pouco sentido, a viking é ainda mais disparatada, ainda mais em um ponto tão recôndito do interior. Um grupo de nórdicos liderados por Leif Ericsson (filho de Eric, o ruivo, colonizador da Groenlândia), de fato chegou à América do Norte perto do ano 1000 e fundou uma aldeia na atual Terra Nova (Canadá), mas esses vikings foram logo massacrados e expulsos pelos nativos e nunca se aventuraram ao sul da atual Nova Inglaterra.
Mas muitos queriam acreditar que haviam ido muito mais longe. A idéia de uma forte presença viking no passado das Américas adequava-se ao preconceito, tão forte no final do século XIX e início do século XX, em favor da superioridade da "raça ariana", que teria sido a criadora de toda a cultura e de todas as civilizações.
As culturas não-brancas, incluindo as orientais e pré-colombianas, resultariam de colonização ou de mera imitação. Se uma estátua pré-colombiana na Bolívia ou no México parecia ter um sinal de barba, provaria que os vikings haviam estado ali, por exemplo...


A pegadinha que virou mito urbano
No Brasil, a obsessão viking começou em 1839, quando o Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), no Rio de Janeiro, recebeu uma carta que relatava supostas inscrições antigas na Pedra da Gávea. Roque Schuch, bibliotecário particular de d. Leopoldina e diretor do Gabinete Mineralógico de d. Pedro II, julgou que os supostos sinais eram runas, o alfabeto dos povos vikings. Comparou-as com as pinturas de São Tomé das Letras e citou a obraAntiquitates americanae do dinamarquês Carl Christian Rafn (que havia reabilitado como história real a saga de Leif Ericsson).
Apesar da distância entre a Terra Nova e a baía da Guanabara ou a Mantiqueira, o próprio Rafn estava ansioso para levar a história a sério. Outro suposto testemunho da presença viking era um certo "Manuscrito 512" no qual um bandeirante do século XVIII descrevia uma grande cidade abandonada (jamais vista de novo) que supostamente encontrara entre os rios Una e Paraguaçu da Bahia, na qual vira inscrições (rúnicas, disseram os vikingófilos) e a estátua de um homem apontando para o norte (o deus Thor, é claro!).
Até a machados de pedra indígenas da Amazônia foi atribuída origem viking: se julgava que os índios brasileiros só podiam usar arcos e flechas. Os sambaquis do Pará foram tidos como idênticos aos da Dinamarca e viu-se origens nórdicas nos mitos, sepulturas e pinturas rupestres amazônicas. Alguns raros índios de cabelos claros (resultado de mestiçagem com portugueses) foram tomados como portadores de sangue viking. Até as formações geológicas das Sete Cidades do Piauí foram tomadas como construções de verdade, naturalmente nórdicas.
A história foi narrada em detalhes por Johnni Langer na revista Nossa História e pode ser encontrada em seu site (http://www.nossahistoria.net/) sob o título "Vikings no Brasil?". Tem sido ocasionalmente retomada por europeus que ainda não conseguiram se desfazer de seus preconceitos contra os nativos de outros continentes, como o alemão Paul Hermann e o francês Jacques de Mahieu.
Ainda mais popular, porém, é a tese da descoberta pelo Brasil pelos fenícios - não só entre aqueles que fazem da especulação histórica um passatempo, como também para um bom número de descendentes de libaneses decididos a valorizar ao máximo as origens "fenícias". Surgiu ao que parece, em 1618, quando o judeu português Ambrósio Fernandes Brandão, estabelecido na Paraíba, especulou em seus Diálogos das Grandezas do Brasil sobre a possibilidade deste País ser alguma das terras misteriosas citadas na Bíblia como origem das matérias-primas importadas pelo rei fenício Hiram para a construção do templo de Salomão.
Mas o que a fixou na mitologia nacional foi uma "pegadinha", aparentemente armada em 1872 por Carl Frederick Koch, auxiliar de estudos orientais do imperador, com a cumplicidade do próprio D. Pedro II, para apanhar o então diretor do Museu Nacional, Ladislau Neto. Em carta, um desconhecido lhe dizia ter encontrado uma inscrição em pedra que reproduzia em desenho. Era um texto em fenício no qual um almirante de Sidon dizia ter naufragado nestas costas depois de separado de sua frota por uma tempestade, nas costas da África.
O caso foi explicado por Angelo Alves Carrara, também na revista e site Nossa História, sob o título "O mistério das inscrições fenícias". Entusiasmado, o professor Ladislau submeteu a suposta inscrição fenícia encontrada na Paraíba a especialistas internacionais. Depois, desconfiou, mas preferiu deixar o assunto morrer a admitir que havia sido enganado. Sem desmentido claro, a informação falsa continuou a circular nas margens do mundo científico.
O curioso é que os mesmos supostos sinais da Gávea, primeiro interpretados como runas vikings, passaram a ser "traduzidos" sem dificuldade como inscrições fenícias. As Sete Cidades vikings também se tornaram fenícias com facilidade, embora os dois povos fosse completamente diferentes. Nesses dois casos, tratava-se de produtos de mera erosão natural. Outras supostas inscrições vikings ou fenícias eram, como em São Tomé, traços de cultura indígena.


Os fenícios trapalhões trazem o diamante cor-de-rosa?
Embora fossem excelentes navegadores para a sua época, os fenícios não tinham condições de atravessar o Atlântico. Chegaram às Ilhas Britânicas, talvez às Canárias e parecem ter circunavegado o continente africano, mas seus navios não faziam longas viagens longe da costa.
Não por uma questão de tamanho ou velocidade: muitos navios fenícios eram maiores e mais rápidos que as caravelas portuguesas. A questão é que uma galera a remo precisa de uma tripulação grande, impossível de alimentar sem paradas freqüentes na costa. E um navio mercante de vela quadrada fixa não é capaz de avançar na direção desejada com (ou mesmo contra) qualquer vento, como faz uma caravela de velas triangulares direcionáveis. Ainda que soubesse para onde ir, mesmo com céu encoberto e sem bússolas.
Mas a versão fenícia do mito se arraigou ainda mais que o viking. Sem contar romances de fantasia, inspirou pelo menos dois filmes (cômicos) brasileiros - Os Trapalhões na Terra dos Monstros, no qual os personagens, junto com a apresentadora Angélica, descobrem uma civilização escondida dentro da Pedra da Gávea e O Diamante Cor-de-Rosa, no qual Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa procuram um diamante levado para o Brasil por fenícios e resolvem o mistério também na Gávea.


O principal responsável pela interpretação "fenícia" da Pedra da Gávea foi um certo coronel Bernardo de Azevedo da Silva Ramos, morto em 1931. Essa fantasia foi ainda mais longe: chegou-se a imaginar que a própria Gávea é uma enorme esfinge esculpida - um punhado de colonos ou náufragos teria criado, aqui no Brasil, monumentos numa escala muito maior do que qualquer coisa feita pelo seu próprio povo em sua pátria do Mediterrâneo!
Ainda assim, em 1919, a Comissão de Arqueologia do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas deu um parecer favorável ao trabalho do coronel Ramos. Segundo o parecer da comissão amazonense, Ramos teria encontrado inscrições com caracteres fenícios, gregos, hebraicos, árabes e chineses (!) formando "sílabas e palavras". Os desenhos da cerâmica amazônica correspondiam ao estilo grego e "pela sua precisão e simetria, jamais poderia ser feitos pelas tribos indígenas existentes no Brasil por ocasião de sua descoberta" (!).
Naturalmente, o que Ramos e aqueles que tentavam agradá-lo não queriam admitir é que meros "bugres" pudessem ter criado arte e cultura desse nível. Tratava-se, obviamente, do belíssimo trabalho dos antigos ceramistas marajoaras assim como dos vasos rituais, muiraquitãs e outras obras de arte das culturas Santarém, Konduri e Tapajós do atual Pará, que tiveram uma organização estatal relativamente complexa e construíram grandes aldeias. Que também existiram (junto com redes de estradas) no Alto Xingu (Mato Grosso) pré-cabralino.
Essa é a verdadeira história desconhecida do Brasil sobre a qual a arqueologia científica pode lançar alguma luz. Mas essas pesquisas só começaram a ser feitas com seriedade a partir dos anos 90, padecem de falta de recursos e não há profissionais adequadamente treinados em número suficiente. Arqueologia não é saquear tumbas cheias de tesouros, como filmes como Indiana Jones ou Tomb Raider levam a pensar, não é colecionar curiosidades e não é dar rédea solta à imaginação, procurando encontrar vikings, fenícios ou astronautas em cada marca na parede. É concatenar de maneira sistemática os indícios e sua disposição, catalogando cada caco e cada montinho de lixo, para tentar reconstituir a vida, as rotinas e a cultura de um povo ao longo das diferentes fases de sua existência e suas relações com o mundo que o rodeou.terra.com.br
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